Wednesday 7 February 2018

Nespereiras


Tenho muitas nespereiras no meu passado.



Sob suas copas andava de triciclo, pisando as folhas grandes e quebradiças que cobriam os caminhos no pátio detrás de casa da minha avó.

Mal destrancava e transpunha o portão tosco e rangente do pátio, fechava a porta ao trânsito e bulício da praça.

Ali dentro, queda, na rampa calcetada, podia ouvir quem passava lá fora na travessa, sem que soubessem que eu ali parava...

Era um pátio secretamente subtraído ao olhares vigilantes dos adultos, imunes às pequenezas que eu tanto estimava e a certas crianças caprichosas que me apareciam na praia; a sacristã que ali morava, sorria com bonomia e nunca ralhava.

O sino rústico e solarengo da igreja ali ao lado, marcava pacientemente o passo daquelas horas estivais e silenciosas.

Ali sentada, à sombra da folhagem escura contra o céu azul, descalçava as sandálias à socapa e esfregava os pés no degrau fresco da porta de entrada, fitando distraída, os coelhos e as galinhas a pitar na capoeira. Lugar abrigado, entre muros altos, uma oficina esquecida detrás de vidraças, ao lado, a arrecadação de cavacas. Conhecia de cor a temperatura, os odores e acústica de cada recanto daquela catedral de nespereiras que eu revisitava incessantemente. De pirolito numa mão, a outra, manobrando o guiador do triciclo de madeira encarnado, pedalava distraída, cismando pelas tardes mornas afora, do verão já avançado.


A outra nespereira era mais solitária, sem cerimónias! 

Com a sua folhagem vaidosa, roçava a varanda do meu quarto, onde dispersava prodigamente os seus frutos de Junho. Estudava, ou escrevia pela noite dentro, de janela aberta para os céus largos e estrelados, azuis escuros, como o Tejo nocturno; do outro lado do vale, Constância repousava alva, ao relento.

De quando em quando, avançando descalça pela tijoleira morna da varanda, empoleirava-me no escadote ao lado da árvore e colhia as nêsperas mais à mão. Algo ásperas, como seu nome, mas aromáticas; sorvia o néctar daqueles frutos dourados e a polpa escorria-me entre os dedos e pelo punho abaixo, desfazendo-se, ali, em verão puro.

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