Friday 1 November 2013

Pátio das Galinhas


Com os pés a balouçar da descomunal cadeira de verga, tentava a todo o custo arrastá-la para a frente, segurando-me ao tampo de mármore da mesa mas esbarrava quase sempre nos seus pés, ou encalhava no empedrado do chão. Na esplanada do Pátio das Galinhas, acabava por beber a laranjina de joelhos no assento, até ter de ceder o meu lugar a uma pessoa crescida. Eu cá, antes queria uma pinhoada, ou um pirulito...
Eram mornas e descuidadas, as tardes passadas naquele pátio abrigado, entre as fachadas caiadas, detrás do gradeamento em ferro forjado, assente num murete de pedra. Pelo imponente pórtico de cantaria trabalhada, ornamentado com duas lanternas, chegavam mães aprumadas com crianças vestidas de branco pela mão, empurrando carrinhos de bebé que atravancavam a esplanada. Atrás, as avós ataviadas apertavam as bochechas dos meninos e acenavam às primas janotas, com exclamações afectadas.
Detrás do balcão, a máquina de café silvava, no pátio cheirava a galões e torradas; os criados de mesa esmeravam a coreografia num elegante volteado, alçando bandejas sobre os chapéus e penteados dos fregueses, depondo entre eles os refrescos, batidos e pasteis, contornando ardinas submissos e os engraxadores servilmente curvados, perante senhores hirtos e abotoados.
Diante da entrada amontoava-se a juventude estupenda, rapazes em trajes de ténis balouçando raquetes, espanhóis de cabelos lustrosos e perfumados, raparigas morenas e ruidosas. Era um alegre convívio, cena imortalizada num palco perpétuo e exíguo, onde nunca fazia calor nem frio, maciamente abrigado de todos os ventos e marés, findas as missas e partidas de ténis, em tardes de nortada, touros e matinée.
E no sossego e descuido em que ando agora, no meio de estranhos, sinto-me como a criança de outrora, entre os adultos ufanos.

Thursday 17 October 2013

Barco


É um desconhecido de longa data, aquele soberbo barco branco, deserto e quedo, ancorado sozinho no cais! 
Quem vigia, detrás daquelas janelas enfileiradas, quando o baarco assim anui - sisudo, mudo - balouçando na água?...
É pródiga a paisagem, mas é suspeita a quietude do rio espelhado que reflecte aquele estranho espectro contra o leito de colinas, lavradas de vinhas douradas... 
Desconfio sempre que tumultos incógnitos revolvem as profundezas turvas de águas lentas e lisas!
De onde surge, para onde se aparta e viaja o navio vazio? Quem governa este barco silencioso, sem nome e sem passageiros, sem horário, sem destino, ora presente, ora ausente, que ninguém vê arribar, nem sair?...

Saturday 12 October 2013

Mirar as Marés


Vamos ver o mar, ensurdecer ao ribombar das ondas, ao piar das gaivotas, deixando pegadas fundas das botas, detrás de nós, na areia molhada! 
Vamos mirar as marés e selar esta amizade inabalável, atravessando mudamente os estrondos da tempestade! 
Vamos, vamos fitar os torvelinhos de espuma branca ao nevoeiro de Fevereiro, olhar, apreensivos, as traineiras desgovernadas na barra, os plácidos os pescadores sentados nos rochedos, sob o farol altivo!
 Escondida na névoa, a ronca ruge, insistente, cansada, avisando o mar e inquietando a terra... A praia de inverno é nossa e dos vultos que ao longe, avançam errantes curvados ao vento. Não sei onde moram as gaivotas!...

Wednesday 9 October 2013

Encantamento


Um encantamento não é feitiço, nem paixão. Um encantamento não tem sofrimento, não tem desespero, nem vertigem, nem abismo. É sem gravidade, não é excessivo, não faz sofrer. Um encantamento tem música, é bailado, dá vida, não morre, apenas se quebra. E se se quebra, apenas adormecemos.
A paixão cega. O encantamento ilumina, não persegue. Um encantamento, ao invés da paixão, não se alimenta. Mas a paixão pode ter o seu encanto.
Se pintasse um encantamento, pintava um despertar feliz e sem alarme. Milhares de perguntas, muitos sóis e luas… um universo cintilante. Um rapazinho ao sol, como o de Miró. Ou a feira, em noite de S. João, à beira-mar, um menino com uma mão-cheia de balões, no meio dos carrosséis, fogo-de-artifício, estrelas cadentes desferindo os céus amenos do verão. Ondas de prata, rebentando ao longe nas areias lisas, o feixe alvo, do farol altivo, cruzando mudo o firmamento, brilhando sobre as vagas cheias!

Saturday 28 September 2013

Holanda


A Holanda é um país sem mistério mas é uma terra ilusória, brinca connosco. Não há colinas, não há relevo, não há florestas, nem muitos esconderijos, não é um país elevado. É horizonte. Os barcos navegam nos prados e campos de flores, os comboios circulam no asfalto, as bicicletas a par da auto-estrada, os canais correm entre casas e por viadutos acima de estradas, enquanto vacas pastam nos jardins e miram as pessoas dentro das casas. Pelas janelas amplas, sem cortinas, sem segredos, quase transparentes, vê-se dum lado ao outro das moradas. As casas são como palcos, onde acontecem cenas que até se podiam presenciar – fosse alguém ligar..
Na Holanda, as cores são fortes mas faltam sombras das árvores e dos montes, atrás dos quais nasça e se ponha o sol - que não há. A Holanda é um país liso e sem perspectiva, como certas pinturas. Tem-se a impressão de que tudo acontece num mesmo plano, no qual gente, casas, gado, flores, bicicletas, barcos, canais, campos e estradas, tudo se gerou duma vez. Percebo os quadros de Brueghel: nada diferencia os acontecimentos no espaço, nada se perde no tempo. Nem se tem a impressão de tempo; a Holanda não é um país novo mas é eterno presente.
Na Holanda há imensa água mas nunca se avista, nem se adivinha o mar. É manso, está escondido atrás dos diques e é preciso subir para o ver. Noutros lugares desce-se para o mar.

Friday 27 September 2013

O Tempo da Neblina


As manhãs de neblina são mansas, densas, macias como a névoa. Nestas horas alvas e solitárias, pintadas de fresco, estreio a praia em surdina. Sem sol não há sombra; sem calor, as cores são de veludo, são águas-fortes, em manhãs de aguarela. Tudo é claro, plácido. E se há nevoeiro não há vento, cheira a iodo, a maresia. É como se o mundo parasse e, reduzido à sua essência, se oferecesse a quem o quiser contemplar.
Sob o imóvel toldo de riscas, sentada na areia fria, envolta num camisolão de linha, leio, jogo distraidamente ao prego, distingo vozes de crianças. Puseram bandeira amarela, à cautela, mas o mar liso e prateado ondula suavemente entre o areal e o céu baixo, ao som rouco da ronca que perpassa a neblina. Os salpicos do brando rebentar das ondas borrifam o ar de espuma e sal.
Silhuetas avançam hesitantes pela passadeira, os passos morrem-lhes na areia. Quem vem à praia em tais manhãs tem de a amar. É que ninguém se pode ver, nem mostrar. Ninguém se vem pavonear. As vistas são curtas, descansa-se o olhar. Está-se ali, para estar!
O nevoeiro suspende o tempo, o trajecto do sol, subtrai-nos uma parcela do mundo. A névoa é brancura, silêncio, abstinência, espaço para pensar. São horas desertas, íntimas e veladas, sem ser preciso esconder nada. E uma manhã de praia assim, tem a alvura e a acústica da neve, abafando e abrandando, como uma manta de veludo, o burburinho urbano.

Mas o sol quer romper; o dia amorna e um véu amarelo perpassa já o nevoeiro; enterro os pés na areia tépida e selo, resignada, o meu segredo. Ao fim de algum tempo, a neblina dissipa-se, apagando consigo os traços daquelas insuspeitas horas incautas na manhã calada.
O sol radia, como se tivesse sido assim todo o dia. A praia desperta, anima-se e, sob o céu azul, marulha a crista efervescente das ondas. Na passadeira, em vez de meros vultos, reconhecem-se agora caras e pessoas. Banheiros armam toldos, chegam avós com netos irrequietos pela mão, mães a empurrar carrinhos de bebé, mesmo empregadas, enfastiadas, carregadas de ceiras e geleiras; famílias abancam na esplanada do café, espanholada em algazarra, a juventude reúne-se em grupos maciços à beira-mar. Iça-se a bandeira verde e banhistas precipitam-se para o mar sereno; faz calor e enquanto o mar está calmo, é de aproveitar.
“Pôs-se um belo dia de praia, quem diria…” dizem os recém-chegados. Para norte, a silhueta serra, vista límpida até ao cabo, mais para cá o forte de Buarcos, a baía e o casario colorido. Para sul, nos penedos do paredão, divisam-se pescadores quietos, diante de canas tão imóveis como o farol listrado e quedo. Botes salva-vidas ondulam no mar para lá da rebentação; o extenso esplendor do areal é um quadro sem mistérios: pôs-se um dia de postal, é certo, mas foi-se a magia!
À tarde, não corre uma aragem. As horas avançam, o calor aperta, a areia escalda, o mar avoluma-se na maré-cheia. As ondas ganham força, e arremessam-se para a areia com o capricho de prima-donas, ataviadas de longas algas, prostrando-se perante a bandeira inânime, ainda verde, pendente do mastro.
Mães prudentes esperam a acalmia, para o semicupio de fugida, ao sair enchem baldes de água para os bebés corados que as esperam nos toldos. Banhistas receosos arredam-se, os mais audazes mergulham furando as vagas crescidas, tentando carreiras. Uns perdem os calções, outros os pés, outros enrolam-se no turbilhão dos remoinhos e são devolvidos zonzos, a cambalear, impiedosamente cuspidos para a areia.
Na passadeira gera-se novo vaivém de espanhóis que recolhem a casa para a sesta, quando os portugueses mais dorminhocos chegam e outros regressam já após o almoço em casa. É como no render da guarda, como se os horários fossem propositadamente desfasados, para que os dois povos andem desencontrados e para que assim, também nunca encham a praia.

O meu verão é uma feliz constante, cada dia de praia é um verão. Ora embrulhada em camisolas, nas ensonadas manhãs de neblina, ora vendo chegar retardatários e partir quem se cansa, ora fruindo o calor irradiante da areia. São horas a fio à beira-mar, banhos e mergulhos, conversas efémeras, ler e dormitar. Contemplo tempestades no mar, lado a lado com as gaivotas, assistindo aos tormentos dos cargueiros e traineiras nas marés vivas, aos vagalhões arremessando-se contra o farol, galgando o molhe, lavando a praia.

Na maré baixa, os toldos já fechados e amarrados, reconquisto a praia vazia; sobram apenas alguns resistentes a jogar ao prego, brincando à beira-mar, banhando-se a desoras e saindo da água a tiritar. Sacudo a areia, rumo a casa com vagar, a jogar à apanhada com as sombras longas na passadeira; os últimos raios de sol brincam entre os meus passos e refulgem no leito prateado do oceano infindo.

Sunday 22 September 2013

Rigores da Escrita


O que escrevo não tem nome próprio, nem título, é inqualificável. São textos, frases, observações, pensamentos, emoções, impressões, dúvidas, perguntas, anotações, fragmentos dos meus dias.
Como estou longe, escrevo cartas a relatar o que nos acontece, o que vejo, o que me impressiona e me entretém. Mas os relatos cansam-me um pouco.
Escrever é pensar: penso a escrever, porque é mais devagar. Escrevo aquilo que não sei dizer. Escrever, é um exercício de higiene mental para esclarecer, arrumar ideias e melhor formular perguntas.
Escrever é uma forma de perscrutar o silêncio, de o deixar falar, desvelar, mostrar. O silêncio, não esconde; quando muito cala! Falar, ilude.
Escrever, é trabalho de precisão e de microscópio, procurar a palavra exacta para uma ideia, detectar e fotografar, com a escrita, a mais ínfima e fugaz impressão. Escrever é traduzir o que me vai na alma. A beleza dum texto está no seu rigor, na fidelidade das palavras àquilo que descrevem. O que escrevo pode ser poético mas não sacrifico a exactidão, em favor da elegância do texto: é uma norma ética da escrita!
 Escrever é uma solidão, é uma viagem de ida, um passeio clandestino pela paisagem de normalidade dos outros, povoada de fantasmas incógnitos e abismos insuspeitos.
Escrever é avançar mudamente entre sombras e vultos, no nevoeiro; é ora luz que cega, ora penumbra, ora escuridão. É sonho de carne e osso, é tropeçar, colidir com as coisas, com o espectro da realidade que agonia e fere e dói.
Os meus escritos são inqualificáveis e avançam como os meus dias. Escrever é errar por caminhos desconhecidos, navegar num mar de equívocos, num mapa que constantemente se transforma.


Reticências não são reticentes, apenas preguiçosas. Deixam o trabalho de escrever ao leitor. Não quero usar a pontuação como artimanha.

Traduzir também é escrever, rescrever.
 Saber escrever, é saber pensar.

Escrever bem, implica ser-se meticuloso na escolha das palavras, uma precisão fotográfica. Escolher apenas a palavra mais aproximada, fere a verdade. Uma palavra aproximada é a mais inexacta, ambígua, fruto da preguiça, é medíocre. Induz em erro. É como um retrato desfocado.


Receio a falta de rigor a escrever, pois temo que as palavras excedam aquilo que penso. Prefiro calar. O silêncio pode omitir, mas pelo menos é honesto e por isso, rigoroso. O silêncio pode ser abstenção. O discurso engana mais que o silêncio.


As metáforas são um remédio que uso quando não tenho palavras? As imagens são fortes, sobretudo para sublinhar o absurdo.

Que mal têm as repetições de palavras? Se não podem eliminar-se, é porque são uma insistência e são necessárias.

Friday 20 September 2013

Robertos


Na Figueira-da-Foz da minha infância, havia Robertos. Dois ou três homens insignificantes, silenciosos e sem rosto, surgiam do nada, com um biombo debaixo do braço, e ocultos detrás do seu pano róseo desbotado, armavam-no no picadeiro, na esplanada, ou na areia da praia.
Ranchos de crianças acorriam, também não se sabe de onde e sentavam-se, expectantes, em redor do teatro. A mim interessava-me sempre mais espiar os actores nos bastidores. Mas os adultos mandavam-me sentar, e ninguém se importava com a verdadeira história, a história insuspeita dos actores escondidos que nos iludiam detrás do biombo fechado.
Os fantoches eram figuras de rosto encarquilhado e queixo pontiagudo, de vozes barulhentas e assanhadas; a peça consistia de brados, insultos e acabava invariavelmente à bofetada. A assistência desinteressada, muda, não ria, nem sorria, quando muito murmurava. Crianças molengas, mordiscavam pirolitos ou pinhoadas que amoleciam ao sol estival, como se não assistissem a nada.
O pano caía, pondo fim às injúrias e estaladas; reinava então um sossego constrangido. Um homem taciturno, engelhado como os fantoches, vinha recolher dinheiro com um chapéu coçado. Magro, triste, sisudo, acenava com a cabeça e murmurava um agradecimento, a voz enrouquecida nas quezílias da peça.
As mães apressadas, quase aflitas, chamavam pelos filhos, como se receassem que as figuras magras e miseráveis, contagiassem os miúdos com alguma maleita ou os arrecadassem nas maletas com os fantoches. 
 Inamovível, fincava o olhar no verdadeiro momento mágico do espectáculo: os homens franzinos, quase inexistentes que lentamente, detrás do biombo, se desvaneciam nas ondas de calor de Agosto.

Thursday 19 September 2013

Desprendimento


Desprendimento é atenção, vigília. Desprendimento não é resignação. É mais do que tolerar, não é fechar os olhos. Pelo contrário: é assentir, receber, de olhos bem abertos e coração limpo; é acolhimento do que der e vier, e não conformar-se amorfamente com o que é. É ver, tomar as coisas tal como são; é devotar-lhes atenção, o que, literalmente, significa ater-se às coisas; desprendimento é como realismo.
Desprendimento exclui apropriação, implica acolher, sem nos nos prendermos a nada; porque ao acolher algo, não se agarra, nem reclama, não se exige nada. Acolher admite compreender? Para acolher, é preciso esquecer?
O desprendimento exclui preocupação. Senão, como acolher? como receber, se nos preocupamos? O desprendimento não se pre-ocupa porque não ante-cipa. O desprendimento, aceita, ocupa-se das coisas quando elas se dão. Desprendimento não é frieza, não é desinteresse, nem descuido, não é indiferença. Desprendimento cuida do que se passa à nossa volta. Também não é distância, nem é proximidade excessiva, pois ambas deformam, uma por defeito, outra por excesso, o que se vê; desprendimento é a justa distância, a distância correcta, de focagem, do coração e do espírito, em relação aos outros e aos acontecimentos; é uma postura de rectidão, correcção, respeito, atenção, deferência, boa educação. É afecção. Permite afeição?
O desprendimento é o oposto de ausência, é presença, exposição, devoção.
O desprendimento é presença de espírito. Um espírito presente é atento e contudo é despreocupado. A presença de espírito é tranquilidade, pura atenção. O desprendimento é um estado de graça, de serena disponibilidade para receber. A inquietude, pelo contrário, pressente, espera, receia, anseia. Refiro-me a inquietude e não a irrequietude, que é buliço, alvoroço sim, mas sem angústia. Quem espera inquieto, exige, desespera. O desprendimento, pelo contrário, espera serenamente, sem exigir, é confiança, pura expectativa, eterno presente. E a esperança, não exclui incerteza. E esta, difere de insegurança. Quem tem esperança, confia, vive com “cara de Páscoa”, leveza de espírito e de ser, coração solto, mesmo perante a incerteza... porque há-de ser o que Deus quiser! Pessimismo, fatalismo é outra coisa: é quando se conta com o pior, quando se perdeu a esperança. Optimismo é esperar estulta, leviana e incautamente sempre o melhor.
Desprendimento é justo-meio, é viver esperançosamente exposto aos acontecimentos, viver, confiante e serenamente consagrado ao presente, ao constante devir. O desprendimento é muito difícil, tão difícil quanto orar sinceramente “seja feita a Tua vontade, assim na terra como no Céu”. Quem, em consciência, pode afirmar querer mesmo o que Deus quiser?

Wednesday 18 September 2013

Fazendo-se Tarde



O verão demora-se, às baforadas, na tarde parada, pesada do Ribatejo. Seco-me, após o banho, estendida no relvado, um livro aberto, esquecido a meu lado. A luz cega, pouso na esteira a cabeça, dormente do estupor estival e do zurzir ensurdecedor das cigarras. Bocejo, semicerro os olhos; dormitar. Lá do alto acenam as agulhas; no ar quente, carregado do odor a resina, estalam pinhas que caem surdas no solo seco em meu redor.
A sombra dos pinheiros é a única frescura no jardim; densa, escura, abóbada tal uma casa. Pinheiros são árvores bravias, sem vaidades, solitárias, sem manias. E crescem altaneiras, um pouco tortas e esquecidas – como certas pessoas - nos penhascos, nas serras, na areia. O seu sussurar é música de embalar, para a sesta ronceira que se acomoda.
A tarde avança em horas iguais, o arvoredo no outeiro ensombra, pouco a pouco, o jardim – enfim, tréguas do calor! 
Uma aragem brusca desperta-me do torpor, revolvendo subitamente as folhas do livro. Um murmúrio eriça a água, as árvores desconversam, num protesto. 
É um estranho alerta, tremor, quase temor que percorre a mata; um resmungo das carumas resinosas, de copas escuras e fartas no céu, não um débil frufulhar de folhas caducas. 
Calam-se as cigarras, ensombram-se as clareiras... Por um momento, o mundo fica em suspenso, nem vozes, nem sol, nem pássaros, nem águas, nem dia... só vento! 
Ergo-me pesadamente, enfim rendida, lobrigando o vale que se estende a caminho de Almourol: o sol esmorece já atrás das colinas, despojos do dia que se despede espelhados no rio. O vento que apagou a tarde, sossega então... Recolho ao alpendre, as faces ainda rubras do sol, quase se arrepiam no dia que tepidamente se fina.
Põe-se a noite morna. Cantam os grilos, Constância branca luz na outra margem, ao luar de Zêzere e Tejo contra o recorte escuro dos montes, como gigantes deitados. 
Imóvel, descalça na tijoleira ainda quente da varanda, contemplo o Tejo prateado; o tecto do mundo são os pinheiros, bravos, quietos, calados. 
Alta, amena, azul, a noite de verão lampeja numa filigrana de estrelas douradas entre agulhas e pinhas.

Monday 9 September 2013

A minha Terra é no Mar




A minha terra é no mar. Não este lugar farrusco, perdido no continente, nascido das pedras, lugar de ventos sem rumo, ponto oculto nos mapas, sob céus parados e sujos.

A minha terra é para além de Espanha e a Espanha imensa é o deserto, planícies de terra amarela e de ninguém, terra espinhosa, de estradas infindáveis entre campos inóspitos e aldeias abandonadas… A minha terra fica no mar.

A minha terra não é no Sul, não é a capital amena, pegajosa, temperada, transpirada e vagamente salgada, à beira do rio lento e leitoso, cidade litoral donde nunca se avista o mar.

Na minha terra rebenta o mar, chove mar, corre desvairado o vento salgado, levantam-se as areias. Na minha rua passeiam gaivotas, no meu telhado pousam, fitando as docas. À minha terra chega o mar, à minha porta troveja o mar, no meu sono sussurra o mar.

Manhãs tardias, chuviscosas, de neblina e maresia, a ronca ecoando nas vielas, as águas sossegadas do cais, as ruas lavadas pela noite fria. Tardes ventosas, varridas pela nortada que encarapela as ondas e morre nas matas… Na minha terra há carneiros no mar…

Dias límpidos e frescos, traineiras coloridas lavrando as vagas, céus azuis, altos, para lá do sol, noites pretas em que se apagam as estrelas e esmorece a lua.

A minha terra é atlântica, o seu ruído são as traineiras, as dragas, a ronca, os gritos das gaivotas, o seu silêncio, as ondas… A minha terra é fria, agreste mas não é árida; na minha terra não acaba o mar.