Saturday 28 September 2013

Holanda


A Holanda é um país sem mistério mas é uma terra ilusória, brinca connosco. Não há colinas, não há relevo, não há florestas, nem muitos esconderijos, não é um país elevado. É horizonte. Os barcos navegam nos prados e campos de flores, os comboios circulam no asfalto, as bicicletas a par da auto-estrada, os canais correm entre casas e por viadutos acima de estradas, enquanto vacas pastam nos jardins e miram as pessoas dentro das casas. Pelas janelas amplas, sem cortinas, sem segredos, quase transparentes, vê-se dum lado ao outro das moradas. As casas são como palcos, onde acontecem cenas que até se podiam presenciar – fosse alguém ligar..
Na Holanda, as cores são fortes mas faltam sombras das árvores e dos montes, atrás dos quais nasça e se ponha o sol - que não há. A Holanda é um país liso e sem perspectiva, como certas pinturas. Tem-se a impressão de que tudo acontece num mesmo plano, no qual gente, casas, gado, flores, bicicletas, barcos, canais, campos e estradas, tudo se gerou duma vez. Percebo os quadros de Brueghel: nada diferencia os acontecimentos no espaço, nada se perde no tempo. Nem se tem a impressão de tempo; a Holanda não é um país novo mas é eterno presente.
Na Holanda há imensa água mas nunca se avista, nem se adivinha o mar. É manso, está escondido atrás dos diques e é preciso subir para o ver. Noutros lugares desce-se para o mar.

Friday 27 September 2013

O Tempo da Neblina


As manhãs de neblina são mansas, densas, macias como a névoa. Nestas horas alvas e solitárias, pintadas de fresco, estreio a praia em surdina. Sem sol não há sombra; sem calor, as cores são de veludo, são águas-fortes, em manhãs de aguarela. Tudo é claro, plácido. E se há nevoeiro não há vento, cheira a iodo, a maresia. É como se o mundo parasse e, reduzido à sua essência, se oferecesse a quem o quiser contemplar.
Sob o imóvel toldo de riscas, sentada na areia fria, envolta num camisolão de linha, leio, jogo distraidamente ao prego, distingo vozes de crianças. Puseram bandeira amarela, à cautela, mas o mar liso e prateado ondula suavemente entre o areal e o céu baixo, ao som rouco da ronca que perpassa a neblina. Os salpicos do brando rebentar das ondas borrifam o ar de espuma e sal.
Silhuetas avançam hesitantes pela passadeira, os passos morrem-lhes na areia. Quem vem à praia em tais manhãs tem de a amar. É que ninguém se pode ver, nem mostrar. Ninguém se vem pavonear. As vistas são curtas, descansa-se o olhar. Está-se ali, para estar!
O nevoeiro suspende o tempo, o trajecto do sol, subtrai-nos uma parcela do mundo. A névoa é brancura, silêncio, abstinência, espaço para pensar. São horas desertas, íntimas e veladas, sem ser preciso esconder nada. E uma manhã de praia assim, tem a alvura e a acústica da neve, abafando e abrandando, como uma manta de veludo, o burburinho urbano.

Mas o sol quer romper; o dia amorna e um véu amarelo perpassa já o nevoeiro; enterro os pés na areia tépida e selo, resignada, o meu segredo. Ao fim de algum tempo, a neblina dissipa-se, apagando consigo os traços daquelas insuspeitas horas incautas na manhã calada.
O sol radia, como se tivesse sido assim todo o dia. A praia desperta, anima-se e, sob o céu azul, marulha a crista efervescente das ondas. Na passadeira, em vez de meros vultos, reconhecem-se agora caras e pessoas. Banheiros armam toldos, chegam avós com netos irrequietos pela mão, mães a empurrar carrinhos de bebé, mesmo empregadas, enfastiadas, carregadas de ceiras e geleiras; famílias abancam na esplanada do café, espanholada em algazarra, a juventude reúne-se em grupos maciços à beira-mar. Iça-se a bandeira verde e banhistas precipitam-se para o mar sereno; faz calor e enquanto o mar está calmo, é de aproveitar.
“Pôs-se um belo dia de praia, quem diria…” dizem os recém-chegados. Para norte, a silhueta serra, vista límpida até ao cabo, mais para cá o forte de Buarcos, a baía e o casario colorido. Para sul, nos penedos do paredão, divisam-se pescadores quietos, diante de canas tão imóveis como o farol listrado e quedo. Botes salva-vidas ondulam no mar para lá da rebentação; o extenso esplendor do areal é um quadro sem mistérios: pôs-se um dia de postal, é certo, mas foi-se a magia!
À tarde, não corre uma aragem. As horas avançam, o calor aperta, a areia escalda, o mar avoluma-se na maré-cheia. As ondas ganham força, e arremessam-se para a areia com o capricho de prima-donas, ataviadas de longas algas, prostrando-se perante a bandeira inânime, ainda verde, pendente do mastro.
Mães prudentes esperam a acalmia, para o semicupio de fugida, ao sair enchem baldes de água para os bebés corados que as esperam nos toldos. Banhistas receosos arredam-se, os mais audazes mergulham furando as vagas crescidas, tentando carreiras. Uns perdem os calções, outros os pés, outros enrolam-se no turbilhão dos remoinhos e são devolvidos zonzos, a cambalear, impiedosamente cuspidos para a areia.
Na passadeira gera-se novo vaivém de espanhóis que recolhem a casa para a sesta, quando os portugueses mais dorminhocos chegam e outros regressam já após o almoço em casa. É como no render da guarda, como se os horários fossem propositadamente desfasados, para que os dois povos andem desencontrados e para que assim, também nunca encham a praia.

O meu verão é uma feliz constante, cada dia de praia é um verão. Ora embrulhada em camisolas, nas ensonadas manhãs de neblina, ora vendo chegar retardatários e partir quem se cansa, ora fruindo o calor irradiante da areia. São horas a fio à beira-mar, banhos e mergulhos, conversas efémeras, ler e dormitar. Contemplo tempestades no mar, lado a lado com as gaivotas, assistindo aos tormentos dos cargueiros e traineiras nas marés vivas, aos vagalhões arremessando-se contra o farol, galgando o molhe, lavando a praia.

Na maré baixa, os toldos já fechados e amarrados, reconquisto a praia vazia; sobram apenas alguns resistentes a jogar ao prego, brincando à beira-mar, banhando-se a desoras e saindo da água a tiritar. Sacudo a areia, rumo a casa com vagar, a jogar à apanhada com as sombras longas na passadeira; os últimos raios de sol brincam entre os meus passos e refulgem no leito prateado do oceano infindo.

Sunday 22 September 2013

Rigores da Escrita


O que escrevo não tem nome próprio, nem título, é inqualificável. São textos, frases, observações, pensamentos, emoções, impressões, dúvidas, perguntas, anotações, fragmentos dos meus dias.
Como estou longe, escrevo cartas a relatar o que nos acontece, o que vejo, o que me impressiona e me entretém. Mas os relatos cansam-me um pouco.
Escrever é pensar: penso a escrever, porque é mais devagar. Escrevo aquilo que não sei dizer. Escrever, é um exercício de higiene mental para esclarecer, arrumar ideias e melhor formular perguntas.
Escrever é uma forma de perscrutar o silêncio, de o deixar falar, desvelar, mostrar. O silêncio, não esconde; quando muito cala! Falar, ilude.
Escrever, é trabalho de precisão e de microscópio, procurar a palavra exacta para uma ideia, detectar e fotografar, com a escrita, a mais ínfima e fugaz impressão. Escrever é traduzir o que me vai na alma. A beleza dum texto está no seu rigor, na fidelidade das palavras àquilo que descrevem. O que escrevo pode ser poético mas não sacrifico a exactidão, em favor da elegância do texto: é uma norma ética da escrita!
 Escrever é uma solidão, é uma viagem de ida, um passeio clandestino pela paisagem de normalidade dos outros, povoada de fantasmas incógnitos e abismos insuspeitos.
Escrever é avançar mudamente entre sombras e vultos, no nevoeiro; é ora luz que cega, ora penumbra, ora escuridão. É sonho de carne e osso, é tropeçar, colidir com as coisas, com o espectro da realidade que agonia e fere e dói.
Os meus escritos são inqualificáveis e avançam como os meus dias. Escrever é errar por caminhos desconhecidos, navegar num mar de equívocos, num mapa que constantemente se transforma.


Reticências não são reticentes, apenas preguiçosas. Deixam o trabalho de escrever ao leitor. Não quero usar a pontuação como artimanha.

Traduzir também é escrever, rescrever.
 Saber escrever, é saber pensar.

Escrever bem, implica ser-se meticuloso na escolha das palavras, uma precisão fotográfica. Escolher apenas a palavra mais aproximada, fere a verdade. Uma palavra aproximada é a mais inexacta, ambígua, fruto da preguiça, é medíocre. Induz em erro. É como um retrato desfocado.


Receio a falta de rigor a escrever, pois temo que as palavras excedam aquilo que penso. Prefiro calar. O silêncio pode omitir, mas pelo menos é honesto e por isso, rigoroso. O silêncio pode ser abstenção. O discurso engana mais que o silêncio.


As metáforas são um remédio que uso quando não tenho palavras? As imagens são fortes, sobretudo para sublinhar o absurdo.

Que mal têm as repetições de palavras? Se não podem eliminar-se, é porque são uma insistência e são necessárias.

Friday 20 September 2013

Robertos


Na Figueira-da-Foz da minha infância, havia Robertos. Dois ou três homens insignificantes, silenciosos e sem rosto, surgiam do nada, com um biombo debaixo do braço, e ocultos detrás do seu pano róseo desbotado, armavam-no no picadeiro, na esplanada, ou na areia da praia.
Ranchos de crianças acorriam, também não se sabe de onde e sentavam-se, expectantes, em redor do teatro. A mim interessava-me sempre mais espiar os actores nos bastidores. Mas os adultos mandavam-me sentar, e ninguém se importava com a verdadeira história, a história insuspeita dos actores escondidos que nos iludiam detrás do biombo fechado.
Os fantoches eram figuras de rosto encarquilhado e queixo pontiagudo, de vozes barulhentas e assanhadas; a peça consistia de brados, insultos e acabava invariavelmente à bofetada. A assistência desinteressada, muda, não ria, nem sorria, quando muito murmurava. Crianças molengas, mordiscavam pirolitos ou pinhoadas que amoleciam ao sol estival, como se não assistissem a nada.
O pano caía, pondo fim às injúrias e estaladas; reinava então um sossego constrangido. Um homem taciturno, engelhado como os fantoches, vinha recolher dinheiro com um chapéu coçado. Magro, triste, sisudo, acenava com a cabeça e murmurava um agradecimento, a voz enrouquecida nas quezílias da peça.
As mães apressadas, quase aflitas, chamavam pelos filhos, como se receassem que as figuras magras e miseráveis, contagiassem os miúdos com alguma maleita ou os arrecadassem nas maletas com os fantoches. 
 Inamovível, fincava o olhar no verdadeiro momento mágico do espectáculo: os homens franzinos, quase inexistentes que lentamente, detrás do biombo, se desvaneciam nas ondas de calor de Agosto.

Thursday 19 September 2013

Desprendimento


Desprendimento é atenção, vigília. Desprendimento não é resignação. É mais do que tolerar, não é fechar os olhos. Pelo contrário: é assentir, receber, de olhos bem abertos e coração limpo; é acolhimento do que der e vier, e não conformar-se amorfamente com o que é. É ver, tomar as coisas tal como são; é devotar-lhes atenção, o que, literalmente, significa ater-se às coisas; desprendimento é como realismo.
Desprendimento exclui apropriação, implica acolher, sem nos nos prendermos a nada; porque ao acolher algo, não se agarra, nem reclama, não se exige nada. Acolher admite compreender? Para acolher, é preciso esquecer?
O desprendimento exclui preocupação. Senão, como acolher? como receber, se nos preocupamos? O desprendimento não se pre-ocupa porque não ante-cipa. O desprendimento, aceita, ocupa-se das coisas quando elas se dão. Desprendimento não é frieza, não é desinteresse, nem descuido, não é indiferença. Desprendimento cuida do que se passa à nossa volta. Também não é distância, nem é proximidade excessiva, pois ambas deformam, uma por defeito, outra por excesso, o que se vê; desprendimento é a justa distância, a distância correcta, de focagem, do coração e do espírito, em relação aos outros e aos acontecimentos; é uma postura de rectidão, correcção, respeito, atenção, deferência, boa educação. É afecção. Permite afeição?
O desprendimento é o oposto de ausência, é presença, exposição, devoção.
O desprendimento é presença de espírito. Um espírito presente é atento e contudo é despreocupado. A presença de espírito é tranquilidade, pura atenção. O desprendimento é um estado de graça, de serena disponibilidade para receber. A inquietude, pelo contrário, pressente, espera, receia, anseia. Refiro-me a inquietude e não a irrequietude, que é buliço, alvoroço sim, mas sem angústia. Quem espera inquieto, exige, desespera. O desprendimento, pelo contrário, espera serenamente, sem exigir, é confiança, pura expectativa, eterno presente. E a esperança, não exclui incerteza. E esta, difere de insegurança. Quem tem esperança, confia, vive com “cara de Páscoa”, leveza de espírito e de ser, coração solto, mesmo perante a incerteza... porque há-de ser o que Deus quiser! Pessimismo, fatalismo é outra coisa: é quando se conta com o pior, quando se perdeu a esperança. Optimismo é esperar estulta, leviana e incautamente sempre o melhor.
Desprendimento é justo-meio, é viver esperançosamente exposto aos acontecimentos, viver, confiante e serenamente consagrado ao presente, ao constante devir. O desprendimento é muito difícil, tão difícil quanto orar sinceramente “seja feita a Tua vontade, assim na terra como no Céu”. Quem, em consciência, pode afirmar querer mesmo o que Deus quiser?

Wednesday 18 September 2013

Fazendo-se Tarde



O verão demora-se, às baforadas, na tarde parada, pesada do Ribatejo. Seco-me, após o banho, estendida no relvado, um livro aberto, esquecido a meu lado. A luz cega, pouso na esteira a cabeça, dormente do estupor estival e do zurzir ensurdecedor das cigarras. Bocejo, semicerro os olhos; dormitar. Lá do alto acenam as agulhas; no ar quente, carregado do odor a resina, estalam pinhas que caem surdas no solo seco em meu redor.
A sombra dos pinheiros é a única frescura no jardim; densa, escura, abóbada tal uma casa. Pinheiros são árvores bravias, sem vaidades, solitárias, sem manias. E crescem altaneiras, um pouco tortas e esquecidas – como certas pessoas - nos penhascos, nas serras, na areia. O seu sussurar é música de embalar, para a sesta ronceira que se acomoda.
A tarde avança em horas iguais, o arvoredo no outeiro ensombra, pouco a pouco, o jardim – enfim, tréguas do calor! 
Uma aragem brusca desperta-me do torpor, revolvendo subitamente as folhas do livro. Um murmúrio eriça a água, as árvores desconversam, num protesto. 
É um estranho alerta, tremor, quase temor que percorre a mata; um resmungo das carumas resinosas, de copas escuras e fartas no céu, não um débil frufulhar de folhas caducas. 
Calam-se as cigarras, ensombram-se as clareiras... Por um momento, o mundo fica em suspenso, nem vozes, nem sol, nem pássaros, nem águas, nem dia... só vento! 
Ergo-me pesadamente, enfim rendida, lobrigando o vale que se estende a caminho de Almourol: o sol esmorece já atrás das colinas, despojos do dia que se despede espelhados no rio. O vento que apagou a tarde, sossega então... Recolho ao alpendre, as faces ainda rubras do sol, quase se arrepiam no dia que tepidamente se fina.
Põe-se a noite morna. Cantam os grilos, Constância branca luz na outra margem, ao luar de Zêzere e Tejo contra o recorte escuro dos montes, como gigantes deitados. 
Imóvel, descalça na tijoleira ainda quente da varanda, contemplo o Tejo prateado; o tecto do mundo são os pinheiros, bravos, quietos, calados. 
Alta, amena, azul, a noite de verão lampeja numa filigrana de estrelas douradas entre agulhas e pinhas.

Monday 9 September 2013

A minha Terra é no Mar




A minha terra é no mar. Não este lugar farrusco, perdido no continente, nascido das pedras, lugar de ventos sem rumo, ponto oculto nos mapas, sob céus parados e sujos.

A minha terra é para além de Espanha e a Espanha imensa é o deserto, planícies de terra amarela e de ninguém, terra espinhosa, de estradas infindáveis entre campos inóspitos e aldeias abandonadas… A minha terra fica no mar.

A minha terra não é no Sul, não é a capital amena, pegajosa, temperada, transpirada e vagamente salgada, à beira do rio lento e leitoso, cidade litoral donde nunca se avista o mar.

Na minha terra rebenta o mar, chove mar, corre desvairado o vento salgado, levantam-se as areias. Na minha rua passeiam gaivotas, no meu telhado pousam, fitando as docas. À minha terra chega o mar, à minha porta troveja o mar, no meu sono sussurra o mar.

Manhãs tardias, chuviscosas, de neblina e maresia, a ronca ecoando nas vielas, as águas sossegadas do cais, as ruas lavadas pela noite fria. Tardes ventosas, varridas pela nortada que encarapela as ondas e morre nas matas… Na minha terra há carneiros no mar…

Dias límpidos e frescos, traineiras coloridas lavrando as vagas, céus azuis, altos, para lá do sol, noites pretas em que se apagam as estrelas e esmorece a lua.

A minha terra é atlântica, o seu ruído são as traineiras, as dragas, a ronca, os gritos das gaivotas, o seu silêncio, as ondas… A minha terra é fria, agreste mas não é árida; na minha terra não acaba o mar.