Tuesday 13 March 2018

Passé




Chego aqui e fico tão esquecida, como o pátio lúgubre nas traseiras pardas deste bairro ignoto, escondido além da linha-férrea e do arvoredo, nesta terra de província!

Detrás das vidraças, no rés-do-chão às escuras, adivinho o olhar, por vezes vigilante, por vezes alheio, do mestre que me aguarda.
Vencendo a indecisão, abro a porta de entrada e, com um cumprimento contido à figura sisuda que assoma ao fundo do corredor frio, deponho o saco no cadeirão vetusto a cheirar a bafio.

Vou a falar com os meus botões: absorta em considerações, tenho, de me preparar, por inconciliável que seja, para as surpresas da hora que se segue! 
Nunca sei bem com que contar, que me reserva a aula, como me vou sair... Tanto acho que desisto, como me digo que não posso levar o mestre à letra! 
Há aulas em que, como na escola, o que ele diz entra por um ouvido e sai pelo outro! Senão, nunca mais voltava!... 
Quem esquece, não envelhece, lá reza um adágio! 
E ao final de cada lição, inexplicavelmente, a reverência nobre e atenta com que o mestre me despede, lá o absolve sempre de tudo...

Empertigado, o mestre senta-se no cadeirão do corredor, calçando os sapatos maleáveis e gastos.  Não diz palavra; penso que pensa que não é preciso... 
Também não me apoquenta. Ao menos, o silêncio não mente facilmente!  Mas o mestre tem muitos quês, muitos senãos, os seus dias sim, e dias não. 
É imperioso e dado a caprichos; diz que é da profissão, ou talvez da nação...

Já tenho dado com ele ali, sentado no sofá, o seu olhar escuro, deposto algures no passado. 
Assim, de queixo apoiado na mão, perde um pouco a soberba e, na sua calvície e sombra, parece mais velho, resignado,  algo cansado; não sei se de mim, do presente ou futuro, ou simplesmente, de tudo... Talvez por isso, ou devido à escuridão, tenha levado tempo a detectá-lo nos cartazes e fotos de outrora que são o único adorno, o único cuidado posto no corredor inóspito!

Entro no vestiário farrusco e fecho a porta atrás de mim, o mestre desce os degraus para a aula... 
Enquanto me apronto, irrompe da sala ao lado uma música rodopiante, estonteante e inconfundivelmente russa.  Com ela, o presto tamborilar de passos no chão, sugere os desenvoltos arabescos da coreografia desenfreada que o mestre enceta... só falta arejar o rançoso corredor com infindáveis piruetas!

Naqueles singulares momentos mágicos de bravura, decerto que a escola, o bairro, a cidade e tudo o que a transcende, se transforma num enorme cenário cintilante... 
Está no centro do universo e o tempo revolve até aos dias em que o mestre bailava entre estrelas cadentes, nos palcos do mundo! 
A menos que a arte lhe dê mais pernas, com tantos passos que bicam o soalho, decerto que o solista tem companhia secreta!... 
Desconfio assim que, feitos com ele, por fátuos momentos, os demais bailarinos dos cartazes do corredor se escapam para o palco!

Intrigada, abro sorrateiramente, a porta do vestiário, a ver se apanho uma fracção do efêmero espetáculo, ao menos de esguelha, através do espelho... 
Mas qual quê!... Mal transponho o vão da porta, tudo se esfuma, fica tudo parado e quedo, como se nunca tivesse sido! 
O corredor tumular e os astutos bailarinos, imperturbáveis como marionetas, lá no quadro, nunca se descaem! 
O mestre aguarda-me quedo, altivo e impassível como sempre, no canto da sala, de costas para o espelho e mão pousada na barra. 
Não sei se, sob o nariz torcido, lhe desvendo afinal, um trejeito de humor no lábio embicado...