Wednesday, 19 June 2024

 

Querida Tia,

 


Sem poder estender-lhe a mão,

Aqui de longe, a vi partir,

De repente, porém devagar.

Apagou-se a chama,

Subtraiu-se, pudera,

À dor que a consumia!

 

Guardo recordações

De pequena, tão vivas,

Grandes e antigas

Como o sol:

 

O prédio de persianas azuis

Na rua sossegada,

A janela aberta

Para o arvoredo,

Também benigno

E cintilante da Gulbenkian.

 

A maciez do quarto

Forrado de livros amigos,

Os lanches primorosos,

O eco do pausado relógio de pêndulo,

Indiferente ao bulício de Lisboa.

 

O seu humor insuspeito,

Tácito, até para consigo,

Escapava aos apressados.

 

Dias alegres,

Dançando, até,

Palmilhando as ruas cheias,

Cavaqueira à lareira,

No Outono de Dublin.

 

E mais que tudo,

Ainda sinto de há pouco,

De quando não sabia dum cais,

A sua mão, quase berço,

Porto certo e amigo

Que não quero largar...

 

Tuesday, 28 May 2024

 Noite

 

A noite separa os dias. 

A noite escura é o fundo dos dias

E dos sonhos, do sono,

Que apenas diferem por uma letra.

 

A noite é um pano pesado que cai,

Pontilhado dos dias como estrelas. 

A noite é o universo detrás dos dias. 

 

Cada noite apaga um dia, 

Cada dia emerge da noite.

A noite cala o dia,

Fecha-lhe os os olhos, 

Serena-o, apazigua-o. 

 

A noite é um portão

Para o insólito jardim das trevas,

A insónia, o portão entreaberto.

 

A noite é o leito dos dias, 

O respirar dos dias, 

O silêncio audível,

Pausa de quem expira. 

 

A noite expira o dia,

Noite é quando falece o dia.