Monday 17 December 2018

O Tal Bom Natal


- Bom Natal, só?!... Isso até soa mal, não quer dizer quase nada...  É átono, cansado, acanhado, apático, receoso!

- É que feliz, já não se diz... e abençoado, nem se fala! Até há quem ache piroso, para poetas; é para cartões de boas festas. Isso de altos valores e palavras pródigas, já era!

- Que hei-de eu dizer? Agora usa-se mais o seráfico santo Natal... 
Bom Natal, realmente, não tem mal... é decente, passa despercebido. É, tal qual bom dia, uma mera formalidade fugidia. 
Mas cá a mim, aborrece-me, faz sono, é como um satisfaz num ponto, pronto!

- Bem, nos dias que correm, se o Natal for bom, já não é nada mau... até já é um pau! Desejar feliz Natal, é descabido, exagerado.... é de perguntar, se não se faz nada por menos!

- Pois eu acho que, ficar-se por bom Natal, é parco e triste! Mais vale estar calado... É mania desta língua em que até o Natal, padece de mediania. Bom Natal é simples inércia, apatia mental, preguiça verbal. Quem fala assim, não pesa o que diz, é quase gago, apenas balbucia palavras sem peso, vazias!...
Tão frouxo acho o bom Natal que não chega cá nada, é uma frase sem eco, sem reverberação.
Votos são outra coisa! Votos, dignos desse nome, não têm papas na língua; vêm do âmago, da volição, são autêntica convicção.Votos autênticos, são um manifesto da alma, são generosamente desbocados, magnânimos, desembuchados!

Eu cá, não faço nada por menos: o Natal há-de ser abençoado, inequivocamente feliz...

A todos, feliz Natal!


Tuesday 18 September 2018

A Pé

Escrevo a pé. 
Não tenho queda para poeta,
Apenas deixo ser o que é!
Nada sei fazer,
Além de ser, 
Pasmar, caminhar.
Sou parada, bronca
Fico especada,
O cão farisca
- Como eu.
Esta hora é só minha!
Saio de casa sem rumo certo,
Não sei senão matutar,
Trago a minha sacola,
Ando à caça do tempo
Na neblina matutina.
Não tenho jeito para poeta
Sou de poucas palavras,
Deixo estar o que está
E ser o que é.

Saturday 7 July 2018

Modo Menor


Modo Menor

Em vez de cair no sono,
Mergulhei no escuro,
Num furacão sem fundo.

O pesadelo funde-se com o sonho,
E após a noite em branco,
Arrasto pelas horas fora,
A fadiga que invade o dia.

E assim me dissolvo no nada,
Outrora espaço,
Antes claro e agora,
Turvo torvelinho.

Ando à deriva no
Mar cinza e revolto,
Que invade e tinge o céu de breu.

Tenho o olhar surdo, sujo,
Os ouvidos cegos,
A mente dormente.
O ruído venceu a música,
A náusea, a alegria,
As trevas vazaram para o dia.

Quero mas não posso,
Penso mas não sou,
O que era, já não é,
Sabia e esqueci.
O ontem subtrai o amanhã,
Vomito o passado,
No presente, estou ausente,
Declino o futuro.

Queria apagar-me,
reduzir-me a ser, 
Apenas respirando, boiando,
De olhar suspenso no ar!
 Quiçá assim visse
Passar as núvens e
 Volver o sol no azul...

Tuesday 13 March 2018

Passé




Chego aqui e fico tão esquecida, como o pátio lúgubre nas traseiras pardas deste bairro ignoto, escondido além da linha-férrea e do arvoredo, nesta terra de província!

Detrás das vidraças, no rés-do-chão às escuras, adivinho o olhar, por vezes vigilante, por vezes alheio, do mestre que me aguarda.
Vencendo a indecisão, abro a porta de entrada e, com um cumprimento contido à figura sisuda que assoma ao fundo do corredor frio, deponho o saco no cadeirão vetusto a cheirar a bafio.

Vou a falar com os meus botões: absorta em considerações, tenho, de me preparar, por inconciliável que seja, para as surpresas da hora que se segue! 
Nunca sei bem com que contar, que me reserva a aula, como me vou sair... Tanto acho que desisto, como me digo que não posso levar o mestre à letra! 
Há aulas em que, como na escola, o que ele diz entra por um ouvido e sai pelo outro! Senão, nunca mais voltava!... 
Quem esquece, não envelhece, lá reza um adágio! 
E ao final de cada lição, inexplicavelmente, a reverência nobre e atenta com que o mestre me despede, lá o absolve sempre de tudo...

Empertigado, o mestre senta-se no cadeirão do corredor, calçando os sapatos maleáveis e gastos.  Não diz palavra; penso que pensa que não é preciso... 
Também não me apoquenta. Ao menos, o silêncio não mente facilmente!  Mas o mestre tem muitos quês, muitos senãos, os seus dias sim, e dias não. 
É imperioso e dado a caprichos; diz que é da profissão, ou talvez da nação...

Já tenho dado com ele ali, sentado no sofá, o seu olhar escuro, deposto algures no passado. 
Assim, de queixo apoiado na mão, perde um pouco a soberba e, na sua calvície e sombra, parece mais velho, resignado,  algo cansado; não sei se de mim, do presente ou futuro, ou simplesmente, de tudo... Talvez por isso, ou devido à escuridão, tenha levado tempo a detectá-lo nos cartazes e fotos de outrora que são o único adorno, o único cuidado posto no corredor inóspito!

Entro no vestiário farrusco e fecho a porta atrás de mim, o mestre desce os degraus para a aula... 
Enquanto me apronto, irrompe da sala ao lado uma música rodopiante, estonteante e inconfundivelmente russa.  Com ela, o presto tamborilar de passos no chão, sugere os desenvoltos arabescos da coreografia desenfreada que o mestre enceta... só falta arejar o rançoso corredor com infindáveis piruetas!

Naqueles singulares momentos mágicos de bravura, decerto que a escola, o bairro, a cidade e tudo o que a transcende, se transforma num enorme cenário cintilante... 
Está no centro do universo e o tempo revolve até aos dias em que o mestre bailava entre estrelas cadentes, nos palcos do mundo! 
A menos que a arte lhe dê mais pernas, com tantos passos que bicam o soalho, decerto que o solista tem companhia secreta!... 
Desconfio assim que, feitos com ele, por fátuos momentos, os demais bailarinos dos cartazes do corredor se escapam para o palco!

Intrigada, abro sorrateiramente, a porta do vestiário, a ver se apanho uma fracção do efêmero espetáculo, ao menos de esguelha, através do espelho... 
Mas qual quê!... Mal transponho o vão da porta, tudo se esfuma, fica tudo parado e quedo, como se nunca tivesse sido! 
O corredor tumular e os astutos bailarinos, imperturbáveis como marionetas, lá no quadro, nunca se descaem! 
O mestre aguarda-me quedo, altivo e impassível como sempre, no canto da sala, de costas para o espelho e mão pousada na barra. 
Não sei se, sob o nariz torcido, lhe desvendo afinal, um trejeito de humor no lábio embicado...

Tuesday 13 February 2018

Não Senhora!




Em criança, certas senhoras
Criam agradar-me e diziam:
“Sim senhora, estás quase uma senhora!”
E eu, queda e algo arreliada,
Pensava cá com os meus botões
Que tinha de estar de atalaia,
Pois não queria ficar como elas!...


Tinha de as cumprimentar,
Já se vê!
Sabiam todas a creme...
Uma delas, de voz penetrante,
Mal eu lhe chegava a cara,
Descarada, beliscava-me
As bochechas com firmeza!


Andavam de mise 
Tufada e laca
Maquilhadas,
Aperaltadas e cheirosas,
Muito parecidas,
De óculos de sol
Tipo mosca,
Tapando-lhes o olhar!
No Inverno, bem abafadas, tolhidas.
De saltos altos,
Caminhar importante,
Empertigadas na roupa justa,
Pregadinhas,
Não podiam despentear-se, nem sujar-se!


Com tais poses e indumentárias,
Não eram para se
Sentar no chão,
Correr, pular
Andar de baloiço,
Triciclo, bicicleta,
Andar ao vento e chuva,
Dar mergulhos no mar,
Fazer castelos na areia,
Bolos de lama!

Não eram pessoas
Para brincadeiras e
Nem sequer queriam
Que saltasse nas poças de água!


Se ao menos gostassem
De bonecos,
De fazer desenhos, pintar,
Inventar histórias!...
Mas não...
É que nem pasmar podiam!

Eram indiferentes a tais ninharias.
Não se entretinham com miudezas,
Não reparavam na a poeira a dançar
Ao sol que entra pela janela,
Nos cortinados levantando-se
Na sala, com a corrente de ar,
A ouvir a chuva cair....


Em Lisboa, viam as montras da Baixa
Admiravam tecidos, fazendas, vestidos.
Cuidavam conversar, entre amigas!
De cozinha, dos filhos
Diziam “Esta criança não come nada!”
“Ai, que frio! Não achas?”
“Ai sim? Que maçada!...
Ai, não? Ah, pois!
Repetiam elas todos os dias
Desinteressantes,
Sem graça, sem filosofias.


E eu na minha inocência,
Quase cria que as senhoras, coitadas,
Tinham nascido ou ficado
Assim, já muito cedo,
Vestidas e arranjadas e tudo
Enfadonhas,
Não por querer, claro,
Mas sei lá porque artes
Ou triste engano do passado!


Algumas, moderadamente interessadas,
Inquiriam "Já andas na escola?
Tens boas notas?
Gostas do colégio?"
Eu sorria, anuía mas pensava “Não!”
Outras diziam
“Então? já sabes o que queres ser,
Quando fores grande?”
“Eu!” pensava...
“Que pergunta!” Cismava e continuava
“Eu!... Acaso não chega??...
Não está bem, ser quem sou?
Terei eu de fingir ou de me desfazer
Noutra que não sou?...
Numa senhora destas, talvez?”
Nã... eu cá... não, senhora!

Monday 12 February 2018

Dormir após de Acordar






Livro caído na almofada, entre revistas,
Enrolada em mantas, 
Dormir tardio, depois de acordar,
É do melhor que me podem dar!
Sono lento, morno sopor, sono ciente, 
Cinzento, zonzo, um gozo!
Brando dormir, passando pelas brasas, 
Dormitar, só devagar.
Hora sem rumo, sem prumo!
Tudo assenta, pousa, repousa...
Olhos pesados, densa mente, muda, 
Fosca, néscia, dormente, demorada,
Seu céu, é o breu  lá de fora!
Entre Sábado e Domingo, descuido o ontem,
E, entregue ao agora, 
Adio o dia que pode esperar!

Wednesday 7 February 2018

Nespereiras


Tenho muitas nespereiras no meu passado.



Sob suas copas andava de triciclo, pisando as folhas grandes e quebradiças que cobriam os caminhos no pátio detrás de casa da minha avó.

Mal destrancava e transpunha o portão tosco e rangente do pátio, fechava a porta ao trânsito e bulício da praça.

Ali dentro, queda, na rampa calcetada, podia ouvir quem passava lá fora na travessa, sem que soubessem que eu ali parava...

Era um pátio secretamente subtraído ao olhares vigilantes dos adultos, imunes às pequenezas que eu tanto estimava e a certas crianças caprichosas que me apareciam na praia; a sacristã que ali morava, sorria com bonomia e nunca ralhava.

O sino rústico e solarengo da igreja ali ao lado, marcava pacientemente o passo daquelas horas estivais e silenciosas.

Ali sentada, à sombra da folhagem escura contra o céu azul, descalçava as sandálias à socapa e esfregava os pés no degrau fresco da porta de entrada, fitando distraída, os coelhos e as galinhas a pitar na capoeira. Lugar abrigado, entre muros altos, uma oficina esquecida detrás de vidraças, ao lado, a arrecadação de cavacas. Conhecia de cor a temperatura, os odores e acústica de cada recanto daquela catedral de nespereiras que eu revisitava incessantemente. De pirolito numa mão, a outra, manobrando o guiador do triciclo de madeira encarnado, pedalava distraída, cismando pelas tardes mornas afora, do verão já avançado.


A outra nespereira era mais solitária, sem cerimónias! 

Com a sua folhagem vaidosa, roçava a varanda do meu quarto, onde dispersava prodigamente os seus frutos de Junho. Estudava, ou escrevia pela noite dentro, de janela aberta para os céus largos e estrelados, azuis escuros, como o Tejo nocturno; do outro lado do vale, Constância repousava alva, ao relento.

De quando em quando, avançando descalça pela tijoleira morna da varanda, empoleirava-me no escadote ao lado da árvore e colhia as nêsperas mais à mão. Algo ásperas, como seu nome, mas aromáticas; sorvia o néctar daqueles frutos dourados e a polpa escorria-me entre os dedos e pelo punho abaixo, desfazendo-se, ali, em verão puro.