Demito o
ano, torcendo-me sobre o passado, intacto apenas na minha memória sinistra.
Canhota como
sou, mesmo querendo, não olvido; faço tudo ao contrário, penso e sinto de
revés; têm-me por torcida, piúrsa, algo esquerda, obstinada.
Seja! É para
o lado que durmo melhor! E sim, ando muito à bolina, remo contra a maré, malho
contra o tempo.
A medo, abri
as malas velhas e de facto, apenas extraí trapos, farrapos: meros traços,
incautamente ali ajuntados, dos nossos solarengos anos desvanecidos. São estas
as únicas vestes que restam?!... Se sou fria, indiferente, tenho os meus apegos.
Choro, baixinho, para com os meus; não estou em minha casa e as paredes têm
ouvidos.
Que me deu a
mim, em tempos, para tão prestemente emprestadar assim o passado, remetendo-o
para mãos afinal incautas, senão ávidas mas em que parvamente me fiei e que
agora, dele se lavam? Pelos vistos, valores mais altos se levantam que as
minhas relíquias.
Uma coisa é
certa: a partir de agora, na minha casa também já não se fia!
Suspeito que
mais remanescências, restarão; que não se terão alienado e que jazem, apartadas,
em baús, à espera que caiam no esquecimento, à nossa revelia. Sei de quem
arrume memórias por cores e tamanhos mas diga que, sem querer, se desfez delas...
Há quem
creia conhecer-me melhor que eu. Se fosse tudo aquilo porque me tomam, era
tanta gente que nem cabia numa só pessoa e corpo.
Se como
dizem, sou contumaz, também sou franca: afinal, na música e na vida, (quase) tudo
se diz mas é preciso encontrar o bom tom. Portanto, quando, contra o que era
esperado, ousei indagar decentemente do paradeiro de tal passado, um trio de
palavras frias, ocas e sisudas me demitiu, acelerando a minha partida. Em vez das
relíquias, trouxe comigo o travo daquela frieza e silêncio que tanto dizem. Afastei-me,
como que olhando através duma lente: aqueles rostos, antes íntimos, se
converteram em estranhos, aquela morada, em casa alheia. Ignoro se depois, tumultos
interiores ou exteriores, se desenrolaram detrás daquelas vidraças.
Vim refugiar-me
no meu canto distante, entre os incondicionalmente meus.
Nada tenho a
perder e não me dou por vencida, pois da memória e de outros álbuns do passado
me socorro. Devo o melhor, a perseverança e vitória a quem incondicionalmente me
ama e, a esses, não desfiro feridas.
Mas o ano
ainda não se finou.
Para ajudar
a purgar o passado, chegam ordens telegráficas para apagar álbuns alheios e
comuns, imagens, testemunhos: alguns tão frescos, outros recentes, tantos de
outrora...
Não roubo almas
a ninguém e, após a lição acima, cuido ser meticulosa e fazer sem demora os
trabalhos de casa, nem custa nada! Folheio os álbuns, rebobino o passado e
extingo, um a um, vultos, sombras, rostos, sorrisos, olhares, eliminando dias
semanas, anos, tempos, encontros, lugares. Quase lhe tomei o gosto e assim, ao
menos, os fardos ficam lá longe, em Dezembro. Um fim acre para dias felizes mas
esses, também ninguém mos tira!
Doze
badaladas. Passo a fronteira para bom porto, na inefável companhia dos meus e
de tudo e todos que merecem ser recordados. Janeiro que venha e quando eu lá
chegar, escrevo!
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